Pe Osnildo Carlos Klann, scj

Desde 2007, o padre Osnildo realiza sua missão dehoniana na República Democrática do Congo e, através de reflexões, notícias e informações, partilha suas experiências missionárias.

Para entrar em contato, escreva para ocklann@yahoo.com.br

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Wittelbols

Volto para a casa Wittelbols, em Kisangani, onde já estive por 3 meses substituindo o P. Joaquim Tomba, durante suas férias, em 2007. Fico aqui até fins de agosto, para acompanhar as Irmãs da Sagrada Família de Kisangani, no capitulo geral delas. Depois, parto definitivamente para Butembo, no leste congolês.
Nesses poucos dias que aqui estou, muita movimentação nessa casa. Estamos em período de fim-de-ano: férias, retiros, ordenações sacerdotais etc. Gente que vem, gente que vai...

Os doentes

Além de tudo isso, nossa comunidade teve de cuidar de dois doentes, : um caso de braço quebrado e outro de inflamação urinária. E cuidar de doente, significa, além de um acompanhante, levar três vezes ao dia, a alimentação, a água, e tudo mais de que o doente precisa, pois o hospital oferece apenas o quarto, a cama, o médico e enfermeiros.
O confrade de braço quebrado já estava no hospital , - Clinica Universitária de Kisangani - mais de 15 dias. Dia 20 deste mês, quando fui buscá-lo, o médico me chamou para dizer que ele deveria ficar ali alguns dias ainda, para se curar bem, pois havia perigo de infecção de um ponto que não estava bem cicatrizado. O que não era verdade. Disse-lhe que seria menos perigoso ele sair daqui e continuar o tratamento em casa, pois o perigo de infecção aqui, na sujeira do hospital, era bem maior que lá em casa. Além disso, disse-lhe , em geral uma simples fratura do braço não exige longo tempo de internação. E o nosso doente já estava lá mais de 15 dias, recebendo pouca atenção. Em outros países, disse-lhe, esses casos de fratura, são tratados em casa mesmo. E ele me respondeu: “não é a verdadeira medicina”. Fiquei indignado com tal orgulhosa resposta, como se aqui se praticasse a verdadeira medicina e não lá fora. Repeti a acusação da sujeira do hospital que nem sanitários dignos, nem água corrente possui Como pode praticar a verdadeira medicina??
Ele quis que assinasse um termo de responsabilidade. Não o fiz e o desanimado colega teve de amargurar mais alguns dias, naquele quarto escuro, sem água corrente, sem lavabo, sem limpeza, quarto que dá passagem a outro quarto adjacente de doente. Quando fui visitá-lo novamente, vi que a cicatriz da operação estava já completamente sanada. Nenhuma inflamação. Eles retém os doentes no hospital para ganhar um pouco mais de dinheiro.
Finalmente nosso doente da Clinica universitária de Kisangani recebeu alta, após 20 dias de internação. O braço estava já bem cicatrizado. Mas eles ainda fizeram nova aplicação de gesso.
No mesmo dia o Frederic, que teve inflamação urinária, recebeu alta da clinica Stenley. O caso desse jovem é interessante. Segunda-feira de madrugada começou a sentir dores agudas no baixo ventre, à esquerda. Dores insuportáveis. Vieram me chamar. Bateram à minha porta. Quase derrubaram-na. Os cachorros, com todo o movimento da casa, latiam sem cessar. E eu nem sinal de acordar. Dormia tranquilamente. Um diácono visitante levou o doente para a clinica... De manhã, me contaram a história. Fiquei com vergonha, mas não posso fazer nada se durmo bem e tranqüilo.
Agora, todo mundo está em casa. Assim o vai- e -vem aos dois hospitais terminou.




A sopa

Estava com vontade de tomar uma sopa. Nessa comunidade não se costuma fazer sopa. Expliquei para o propedeuta “cozinheiro” como deveria fazer. Eu também não sou lá bom cozinheiro. Mas dei-lhe as explicações necessárias. Os ingredientes eram poucos: macarrão, cebola, tomate, salsinha...

Deixei-o na cozinha e fui fazer a exposição do Santíssimo Sacramento, com adoração e recitação das vésperas do dia. Quando tudo terminou, corri para a cozinha, pois me lembrei dos pratos fundos e das colheres para a sopa. Não os encontrei. Perguntei ao “cozinheiro”:
- Onde estão as colheres e os pratos? Ele me olhou espantado:
- Por quê?
- Para tomar a sopa, oras!!
- Não sei, respondeu ele.
- Onde está a sopa? – perguntei.

Ele me mostrou a tigela que estava em cima da mesa: spaghetti ao molho de tomate. A sopa para eles era isso ali. Enfim, apesar da troca, foi um bom jantar.

Kisangani, 25 de julho de 2009.

P. Osnildo Carlos Klann, scj

sábado, 27 de junho de 2009

45 anos de sacerdócio

Ordenação
Peço-lhes licença, meus amigos e amigas, para falar um pouco de mim mesmo. Desculpem a falta de modéstia. Mas é para pedir orações. Dia 28 de junho, amanhã, estarei completando 45 anos de vida sacerdotal. Gostaria que vocês se unissem ás minhas ações de graças e meus louvores a Deus pela inestimável graça da perseverança vocacional.

Lembro-me muito bem daquele 28 de junho de 1964. A igreja matriz da paróquia São Luiz Gonzaga de Brusque, não estava ainda terminada. Mas estávamos inaugurando o novo altar. Naquele mesmo ano, Sua Excelência dom Joaquim Domingues de Oliveira, então arcebispo de Florianópolis, e nosso ordenante, festejava seu jubileu áureo de bispo, coisa rara, na Igreja. Éramos sete diáconos: Dom Nelson Westrupp, P. Valdir Vicentini, P. Walmor Zucco, P. Alirio Pedrini, P. Osnildo Carlos Klann, P. Floriano Martins (in memoriam) e Antônio Boeing (desistiu). Daqui da longínqua Kisangani, envio a todos eles, meu fraternal abraço e minhas calorosas saudações.


Minha missão
Depois de ordenado, trabalhei 40 anos no Brasil, exercendo as mais diversas funções: vigário paroquial, professor e formador, no seminário menor de Corupá, professor na Faculdade de Teologia, de Taubaté (SP), secretário provincial, mestre de noviços, superior provincial por três períodos, superior regional da Região Brasileira Meridional.

Por dois anos e meio, Diretor da formação permanente da Congregação dos Padres SCJ, em Roma.

Desde fevereiro de 2007, estou aqui na República Democrática do Congo, trabalhando como missionário, no Centro de espiritualidade Dom Grison, Kisangani.
Ao longo desses 45 anos, experimentei profundamente a misericórdia do Coração de Jesus. Como São Paulo, só posso dizer: “ Pela graça de Deus, sou o que sou”. E se consegui manter-me fiel, foi pela força de Deus que agiu em mim. Ele consegue, com pobres e frágeis instrumentos realizar sua maravilhosa obra de salvação. Se consegui fazer algum bem, foi obra dELE. Por isso, estou-lhes pedindo orações para agradecer a esse Deus misericordioso que olhou para a pobreza de seu servo e o escolheu, desde toda a eternidade, para ser seu ministro e dispensador de suas graças, entre seu povo. Se falhei em mina missão, se prejudiquei alguém – e certamente foram muitas as vezes – peço perdão a Deus e a meus irmãos e irmãs.


Nova missão
A decisão de vir para o Congo, depois de tantos anos de trabalho no Brasil e em Roma, não foi fácil. Mas não me arrependo. Estou contente aqui, apesar dos problemas e dos sofrimentos pelos quais a gente deve passar.

Depois de dois ano e meio de Kisangani, estou para mudar de comunidade e de cidade. Nosso mestre de noviços, P. Albert, foi eleito conselheiro geral da Congregação SCJ e deverá partir para Roma. Nossa província não tem um padre congolês que possa substituí-lo, no momento. Por isso, o superior provincial me pediu para ir a Butembo, ser o mestre de noviços. É a terceira vez, em minha vida sacerdotal, que recebo essa nomeação. Aceitei prazerosamente, pois conheço Butembo, no leste congolês, e tenho certa experiência dessa etapa de formação religiosa. Lá vou encontrar uma realidade bem diferente daqui. É um outro Congo, a meu ver. A começar pelo clima. Aqui temos verão o ano todo. Lá, é inverno, o ano inteiro. Aqui não se vê montanha. Lá é uma região montanhosa. Mesmo a mentalidade do povo é diferente. Lá são mais participativos, mais responsáveis, atuam melhor na comunidade paroquial; não vivem pedindo, pedindo sempre, como acontece aqui. Lá tomam iniciativas e não esperam tudo do padre.
Parto para Butembo, final de agosto, começo de setembro.


Ajuda.
No começo do ano, pedi a meus amigos e amigas, que quisessem e pudessem ajudar um pouco a custear os estudos de alunos e alunas pobres daqui, que me enviassem sua colaboração para o começo do ano escolar daqui, que é setembro-outubro. Alguns já me enviaram sua colaboração e, mais uma vez, lhes agradeço de coração. Os que desejarem, peço enviem até fins de agosto desse ano. Não mandem nada por correio ou sedex. Nada disso funciona aqui. Enviem ou pela agência Western-Union ( no Banco do Brasil), ou pela conta que a Congregação tem em Roma. Vou repetir os dados:

Titular da conta: CASA GENERALIZIA SACERD. SACRO CUORE.
ENDEREÇO: VIA CASALE SAN PIO V, 20, 00165 ROMA.
BANCO: INTESA SAN PAOLO (FILIALE 295) 00165 ROMA.
IBAN : IT85 F010 2503 2171 0000 0002186
BIC: BICTITMM
Sempre escrever: Para o P. Osnildo Carlos Klann.


Concluindo
O sacerdócio é a onipotência divina, na fragilidade humana” ( Pio XII)
Meus amigos e amigas, muito obrigado pelo que vocês representam em minha vida. Sem sua valiosa colaboração e seu decisivo apoio espiritual não estaria hoje aqui, louvando o Senhor e agradecendo-Lhe o dom do sacerdócio que Ele gratuitamente me concedeu.


Obrigado. Deus os abençoe!
Kisangani, 27 de junho de 2009
P. Osnildo Carlos Klann, scj

quarta-feira, 17 de junho de 2009

São Gabriel em festa

Não se trata de festa junina. Não existe por aqui. É festa religiosa. Muito concorrida. Principalmente, por causa da presença de S. Excelência D. Marcel UtembiTapa, arcebispo de Kisangani. É a primeira visita oficial que ele faz a essa paróquia. Veio para fazer batizados, crismas e primeira comunhão. Aqui faz-se pouco batizado de crianças. Mais são adolescentes e pessoas adultas.

A recepção ao prelado foi feita na rua principal do bairro, na cité, como dizem aqui. Muita criança presente. Canto, oferta de flores, saudação de boas vindas. Depois, caminhada até a matriz. Uns trinta minutos.

A missa começou às 8h45m. Muita gente, dentro e fora da igreja. Apos a homilia do Sr. Arcebispo, os batizados (11 adolescentes), as crismas ( 25 crismandos). A cerimônia durou 1h15m.

Naturalmente, a procissão das ofertas foi longa. Interessante, os que estavam fora da igreja se recusaram a depositar o dinheiro, na cestinha que os coroinhas levaram lá pra fora para receber a oferta. Eles queriam entrar na igreja, dançando para depor o dinheirinho diante do altar. Assim a paróquia perdeu alguns trocados.

Outro momento prolongado foi a oferta dos presentes ao arcebispo, no final da missa. Além do dinheiro que muitos ofertaram, não faltou a oferta singular de banana, abacaxi, folhas de aipim, muchicha, pombinhos (2), galinhas e galos (11) e até dois bodes. Esses entraram solenemente na igreja trazidos por seus ofertantes.

Durante a missa, de repente, vi, com a rabo dos olhos, que um jovem transportava nos braços para fora da igreja, um coroinha. Perguntei o que havia acontecido.

- Não é nada não, padre. Desmaiou por causa da fome. Já comeu e está melhor!

Ao voltar para meu lugar, comecei a refletir: hoje, festa da Eucaristia, o pão da vida. Jesus prometeu um pão que dá a vida e quem comesse desse pão não teria mais fome. Jesus também multiplicou os pães para milhares de famintos. Por que não multiplica também agora para esses pobres coitados, que desde ontem certamente não comeram nada e agora aqui estão servindo a essa prolongada missa com o estômago vazio, que continuará assim provavelmente até o fim do dia??? Pareceu-me ouvir là fundo de mim mesmo esse desafio: “dai-lhes vos mesmos de comer”!! Como, meu Deus, saciar tanta gente?!!!

A missa terminou pelas 13horas.
Pensam que vamos comer? Nada disso. Há agora o grande desfile, diante da igreja. Não é um desfile de modas, não. Não se conhece isso aqui. É o desfile dos grupos paroquiais, das associações, dos movimentos eclesiais, das comunidades de base, que aqui se chamam “Comunidades eclesiais de vida”(CEV). É coisa bem animada. Um grupo de músicos toca e canta, e os diversos blocos passam dançando diante das autoridades e os convidados especiais, sentados na frente da igreja. Nem falta a cerimônia tradicional de saudar respeitosamente essas autoridades com a devida inclinação.

A terceira parte da festa é o almoço para os convidados, poucos, e para os que pagaram ( 2.000 francos congoleses= 2,5 dólares americanos). Foram só 150 pessoas. 2000 francos congoleses é muito dinheiro para a maioria absoluta de nossa paroquia. Pagar 2,5 dólares para um almoço é um luxo. Mas não se pode cobrar menos, pois as coisas são caras aqui. E a paróquia não tem nenhuma condição de oferecer gratuitamente um almoço para seus paroquianos.

O almoço começou às 15h30m. O cardápio, como sempre: arroz, feijão sem caldo, preparado com óleo vegetal, sombe ( folha de aipim), muchicha (outro tipo de legume), carne de galinha, lituma ( banana amassada e misturada, às vezes, com aipim), molho e pilipili ( pimenta), fufu ( tipo de pirão de farinha). Bebida: cerveja, coca-cola, fanta, tônica e água. Como sobremesa, mamão e bolo.

O dia foi bem animado. Tudo decorreu bem segundo os parâmetros daqui. E o sr. arcebispo saiu contente com tudo que viveu e viu, nesse dia, na paróquia de São Gabriel, a primeira da Província Oriental da Republica Democrática do Congo.

Kisangani, 15 de junho de 2009.
P. Osnildo Carlos Klann, scj

sábado, 13 de junho de 2009

João Paulo

Apenas entrei em meu escritório, depois do descanso da tarde, e alguém já batia à minha porta. Mal humorado, pois, nem tinha ainda começado a trabalhar, e já alguém pedindo dinheiro... pensei com meus botões. Abri. Dito e feito. O rapaz de ontem, de novo aqui. Ontem ele veio com uma carta do pai, implorando ajuda para a inscrição na escola. Como aqui eles mentem muito e é preciso ser muito prudente para não ajudar malandros ou crianças que vêm a mando de adultos aproveitadores, disse-lhe que devia esperar, pois queria saber quem ele era, onde morava etc.
Mas nem deu tempo para saber nada dele. Estava ele ali, de novo, diante de mim, com uma cara triste, roupa suja e rasgada, descalço.

- Padre, me dá um terço!

Foi a porta de entrada. Fui buscar o terço; enquanto isso ele se sentou na cadeira à frente de minha escrivaninha. Dei-lhe o terço. E ele, com grande tristeza no rosto e na voz, me disse:

- A gente sofre muito.
Essas palavras caíram como uma bomba em meu coração. Não tive mais duvidas.

- Qual é seu nome?
- João Paulo.
- Quantos anos tem?
- 16.
Pela aparência fisica dava-lhe apenas uns 12 ou 13 anos.
- Quantos irmãos e irmãs você tem?
- 9.
- Que faz seu pai?
- É desempregado. Desde ontem que não como. E essas são minhas roupas!

Como resistir a uma realidade tão bruta como essa? O jovem era sincero. Junto com a ajuda solicitada, dei-lhe um emocionado abraço, pedindo a Deus que o abençoasse.
Quantos João Paulo andam pelas ruas de Simisimi!

de Kisangani, pe. Osnildo Carlos Klann,scj

O relojoeiro

Meu relógio parou. Comprei nova bateria. Não adiantou. Fui procurar um relojoeiro. Encontrei-o sentando atrás de uma pequena mesa, cheia de velhos relógios, com instrumentos primitivos para os consertos: um pedaço de gilete, para raspar a sujeira do relógio, uns panos sujos para limpar as peças, um monte de peças usadas para possíveis futuros usos, tampas de lata para guardar as peças dos relógios desmontados, umas pinças para pegar principalmente, os ponteiros; outras pequenas bugigangas deixavam pouco espaço livre, na mesa, para o trabalho do relojoeiro.

Um congolês de meia idade, de óculos, examinou meu relógio e disse:
- É sujeira.
- Quanto vai custar a limpeza?
- Um dólar!

E ele começou o trabalho. Ofereceu-me, primeiro, o banco a seu lado para sentar. Preferi ficar em pé, diante dele para ver seu trabalho. Desmontou totalmente o relógio. Pensei comigo: vai sobrar peças no fim do trabalho!
Com o pedaço de gilete raspava a sujeira e com um pincel de barba limpava as peças, o mostrador, o vidro...
Terminado esse trabalho, começou a montar o relógio. Sem óculos especiais de aumento. Sem lupa. Só com seus velhos óculos de grau. Recolocar os ponteiros não foi fácil.
Tudo pronto, me entregou o cronômetro. Verifiquei que o ponteiro dos segundos parava, de vez enquanto. Abriu novamente o relógio. Retirou os ponteiros. Recolocou-os no lugar. Dava algumas batidinhas de leve, com a pinça, em cima do ponteiro teimoso. Enfim, tudo funcionava a contento. Consertou também a pulseira.

_ Quanto sai?
- Dois dólares!
- Havíamos combinado um dólar.
- Mas o conserto da pulseira?!!

Apresentei-lhe cinco dólares. Devolveu-me 2.400 francos congoleses.

Não pensem que tudo isso se desenrolou dentro de uma sala, de uma relojoaria. Não. Foi ali, na calçada de uma rua central de Kisangani, perto do mercado central. Ao lado do relojoeiro trabalhava o alfaiate com sua antiga máquina de costura. Costurava um vestido vermelho de menina. Do outro lado, um jovem depositava um saco cheio de mercadorias , em cima de velhas malas. A frente, espalhados pelo chão da calçada sapatos, de homens e mulheres, tênis de marca, certamente todos pirateados, chinelos, panelas, roupas; montes de colchões de espuma; mais adiante, cambistas, com pilhas de francos congoleses, expostos em suas mesinhas de trabalho. Gente inúmera passava por ali ou querendo comprar algo ou vendendo os mais variados produtos, desde amendoim, “baigné” ( espécie de bolinho de trigo) até produtos de beleza para mulheres. Não faltaram os pedintes.
O centro comercial de Kisangani é assim. Um verdadeiro formigueiro. Além das pequenas lojas onde se vende quase de tudo, os camelôs ocupam toda a extensão das calçadas num fantástico mosaico de objetos à venda, provenientes principalmente da China, de Taiwan, de Dubai, de outros paises do Oriente e de paises africanos.

Assim é a nossa Kisangani!

P. Osnildo Carlos Klann, scj

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Relatos...

Babayogi

Hoje, 17 de maio, celebrei missa na capela de Santa Bakita, no bairro Babayogi. Capela extremamente pobre, tanto material como espiritualmente.

Na aldeia, muita gente fora de casa, preparando um pouco de comida. Infalivelmente, folha de aipim, muchicha e vi também muitos escargots,que eles buscam no mato. Tudo isso, fora de casa. A cozinha é sempre fora.

Babayogi não difere de outros vilarejos da “brousse” (interior) congolesa. Mas o que me chamou a atenção foi a pobreza espiritual dessa capela da margem esquerda do Rio Congo. Antes da missa, o presidente e o catequista conversaram comigo. Muito desanimados e tristes comentavam que não havia nenhuma criança na catequese, apesar do numero enorme de meninos e meninas na aldeia. Para o culto dominical e mesmo para a missa, estão presentes o catequista, o presidente, quatro senhoras, alguma criança e mais nada. Todos os outros passaram a freqüentar outras religiões ou seitas ali existentes.

Perguntei o motivo dessa deserção. A resposta: por causa do tempo de preparação para a primeira comunhão, por causa da dificuldade do batismo e por causa da comunhão.

Tempo da catequese

Devo explicar um pouco o que significa tudo isso. São três anos de preparação à primeira Eucaristia. Para eles é muito tempo. Muitas garotas, durante esse tempo são já adolescentes e muitas já grávidas. Por isso abandonam a catequese. E os outros catequizandos não são perseverantes. Abandonam a catequese. Querem uma preparação mais rápida, superficial. Um vapt/vupt diríamos nós, usando o linguajar de Jô Soares.

Batismo das crianças

Segundo as normas da arquidiocese de Kisangani, para batizar os filhos é preciso que os pais sejam casados na Igreja. Aqui, outro problema: o casamento religioso. Grande parte dos casais estão apenas amasiados, como dizemos nós. Coabitam sem se casar no civil ou na Igreja. Por quê? Uma das razões é a taxa que devem pagar para a realização desses casamentos e ainda o dote que o noivo deve dar à família da noiva.. O dote é bem pesado. Em geral é em espécie. O noivo deve dar à família da noiva, por exemplo, 10 cabras, tantos quilos de arroz ou de feijão, bananas, bebidas; há casos que pedem vacas e cabras, mais o vestido da mãe e o terno do pai da noiva. As exigências variam muito e, às vezes, de acordo com as qualidades da moça. Muitos não têm como dar esses dotes. Mesmo se for à prestação; se essas não forem cumpridas, a família retira a filha do esposo. O casamento é questão das famílias, não apenas dos noivos.

Esses pais amasiados só podem batizar o primeiro filho (a). O segundo(a) e os demais só serão batizados após o casamento religioso. E isso é difícil.

A comunhão

Na Igreja católica, os que não são casados no religioso não podem comungar. Nem os polígamos. As seitas admitem à “comunhão” mesmo os que não são casados religiosamente e até os polígamos. Ora, os que vivem essa situação irregular e desejam “comungar” se refugiam nessas igrejas que lhes permitem “essa comunhão”.

A missa

Os dois senhores que conversaram comigo, queriam fazer apenas um culto. Disse que não. Iríamos celebrar a missa, mesmo com poucas pessoas. Assim foi feito. Começamos com 4 pessoas. Mas aos poucos foi chegando mais gente; algumas senhoras, alguma criança e, de repente, entrou uma caravana toda que veio da capela vizinha de São Carlos, com seus instrumentos musicais e com um entusiasmo contagiante. A capela ficou cheia. Os cânticos bem animados. Outro clima se criou. Para mim foi uma surpresa agradável. Com maior participação, a gente tem maior vontade de celebrar.

Para terem uma idéia da nossa real situação, a coleta de hoje, rendeu menos que um dólar (630 francos congoleses; o dólar vale 800 FC). Mas não é por isso que vamos deixar de visitar as capelas do interior.

As velas do altar

No fim da missa veio um senhor me pedir as duas velas do altar. Em sua casa não tinham mais o “petrole” ( querosene) para a iluminação. Energia elétrica é uma raridade.

A volta

A missa terminou pelas 12 horas. Não nos ofereceram almoço. Partimos. A viagem rio acima foi penosa. O rio estava cheio. A correnteza forte. Dois remadores apenas. Íamos ao longo da costa, apoiando-nos nos ramos de árvores ou nos bambus pendentes sobre o rio. As árvores e os bambus serviam de apoio para impulsionar a canoa, pois os remos eram insuficientes. Em alguns momentos, a canoa recuava ou ficava parada, pois os remadores não davam conta de vencer a correnteza. Em 4h45m percorremos 5 quilômetros rio acima. Admiro a valentia desses remadores. Encontramos no percurso outras pirogas. Uma me causou medo. Vinha cheia de folha de aipim, carvão, bambus e ainda com passageiros, crianças e mulheres. Ela estava toda inclinada para a direita. Dava a impressão que, de uma hora para outra, iria virar. Os remadores eram valentes e corajosos. A canoa, apesar do peso, deslizava lentamente sobre as águas. Quando nos ultrapassou, bateu em nossa piroga. Pensei: ela vai virar. Que nada! Continuou firme sua viagem.

Depois dessas longas e intermináveis horas, começamos a atravessar o rio. No outro lado, nossa Land Rover me aguardava para percorrer os dois quilômetros restantes até chegar em casa. As capelas que visito não ficam longe de casa. Mas a viagem de canoa é lenta. É preciso ter muita paciência e bastante saúde também para ficar todas essas horas mal acomodado numa canoa pouco confortável. Mas vale a pena viver essas aventura, por causa dELE. Não me queixo. É bom.

Um questionamento

Nessas longas horas de viagem monótona, temos tempo para rezar e para pensar. Muitas vezes fico remoendo em minha mente, como resolver esse grave problema que enfrentamos: como evangelizar eficazmente numa realidade em que as pessoas estão só pensando em ganhar alguns trocados para continuar hoje a viver, porque amanhã não se sabe o que vai acontecer...? É realmente um questionamento intrigante. O que existe aqui é a preocupação de sobreviver. A maioria absoluta das pessoas que nos procuram não é para aconselhamento espiritual, para uma conversa amiga. É para pedir dinheiro: para a escola, para o hospital, para o aluguel da casa, para comprar semente, leite para as crianças, sandálias, roupa, chapéu, remédios etc. etc. Eu me pergunto: anunciar o evangelho para quem está de barriga vazia? Doente, sem recursos? Sem roupa para vestir? Sem casa para morar? Uma estatística da Unicef revela que entre 10 crianças congolesas 7 vivem abaixo do nível de pobreza, isto é, vivem com menos de um (1) dólar por dia. Em Kisangani, segundo a Caritas diocesana, existem 5.000 órfãos e órfãs. Fora naturalmente os órfãos de pais vivos, coisa muito freqüente aqui. Se não existe um mínimo de condição humana é difícil anunciar a Boa Nova do Evangelho. Como vou falar de Deus que é Pai bondoso para a mãe cujo filho chora de fome? Como vou dizer que Deus é providente para o pai que está desempregado há anos e faz algum biscate para sobreviver, com sua esposa e filhos?

Eis o questionamento que me faço continuamente. Essa realidade me faz sofrer mais que tudo o resto. O resto não é nada em comparação da dor dessa realidade.

Tenham muita paz no coração e na família. Um abraço.

Kisangani, 17 de maio de 2009

P. Osnildo Carlos Klann, scj

domingo, 19 de abril de 2009

Nova paroquia de Kiragho, em Butembo

Minhas amigas e meus amigos brasileiros, havia pormetido de lhes enviar noticias religiosas de Butembo, apos as cronicas sobre acontecimentos politico-sociais. Ai vai minha crônica sobre a nova Paroquia de Kiragho.

22 de fevereiro de 2009.
Hoje vi nascer uma nova paróquia. Seu nome: Bem-aventurado Isidoro Bakanja; habitantes 19 mil, dos quais 12 mil católicos; 5 setores, 70 capelas; lugar de nascimento: Butembo, bairro Kiragho.
A cerimônia de instalação foi longa, 4h30m, presidida pelo bispo Dom Melquisedeck, ordinário de Butembo-Beni. O primeiro pároco: P. Paul Slowik, dos Padres do Sagrado Coração de Jesus.
Uma multidão se reuniu nas encostas ao lado da igreja, que está localizada numa colina. Um palco bem montado para os concelebrantes. Um grande numero de pessoas encarregadas da ordem. Cordões de isolamento marcavam os diversos “setores” dos participantes. Serviço de alto-falante, não perfeito, mas muito bom, apesar de estarmos num município que não possui energia elétrica e é uma das principais cidades do Nord Kivu.

15 padres concelebraram. As autoridades municipais estavam presentes. É de se destacar o coral. Não cessava de cantar. Havendo uma pequena pausa, lá estavam eles com algum canto, ao som do TAM- TAM e do órgão eletrônico: mistura de antigo e do novo. Todos de uniforme, naturalmente. Os coroinhas e as dançarinas embelezaram a cerimônia. Admiro sempre a seriedade e a precisão com que eles executam suas funções. É bonito de se ver.

O tempo estava instável. Rezava a Deus para que não caísse água durante a celebração.. Seria um desastre. Às vezes parecia que ia chover; nuvens pretas cobriam o sol; logo depois esse ressurgia reanimando a gente. Mas foi terminar a cerimônia que a chuva despencou. E não foi pouca água não. Mas nesse momento, as autoridades e os convidados especiais já estavam na sala de refeição.
Tudo começou com a bênção da igreja. E tudo começou pontualmente às 9 horas, como programado. Coisa rara , por aqui; ao menos em Kisangani é quase impossível acontecer algo semelhante.

A homilia do bispo foi longa. Mais de meia hora. Aqui falam muito. Dizem que, se a homilia for curta, não vale a pena. As outras partes da missa decorreram normalmente.
Longos foram os discursos, no fim da missa: o vigário geral, o primeiro padre que trabalhou aqui; depois falou um padre assuncionista ( fez um novo sermão). As autoridades civis também fizeram uso da palavra; antes da palavra final do bispo, falou nosso provincial, P. Vilson Hobold. A última palavra foi do bispo, naturalmente. Mais uns onze minutos. Finalmente a procissão final rumo à casa paroquial, onde estava sendo preparado o almoço. Já eram aproximadamente 14 horas.

Bem-aventurado Isidro Bakanja

Como esse bem_aventurado congolês nâo é conhecido no Brasil apresento um breve historico de sua vida.

Isidoro Bakanja é um jovem màrtir congolês. Nasceu por volta de 1880-1890, num pequeno vilarejo do Estado do Equador, na Republica Democràtica do Congo. Muito cedo foi à procura de trabalho em Mbandaka. Foi contratado como ajudante de pedreiro e pouco a pouco foi adquirindo a reputaçâo de trabalhador honesto e integro.. Frequentava a missâo de Bolokwa Nsimba,dos padres trapistas. A 6 de maio de 1906 recebeu o batismo e o escapulàrio de N.Sra do Carmelo e, um ano mais tarde, a Primeira Comunhâo.

Terminado esse contrato de trabalho, volta para a sua aldeia, mas nâo encontrando serviço lá, foi contratado como doméstico por um branco, Sr. Reynders, da Sociedade Anônima Belga, em Busira. Foi sempre um trabalhador aplicado e muito piedoso.

Tempos depois, Isidoro aceitou acompanhar seu patrâo que fora nomeado para o cargo de adjunto do Sr. Van Cauter, homem muito duro, deshumano, que nâo gostava dos africanos convertidos ao cristianismo. Proibe Bakanja de ensinar as oraçôes a seus companheirso de trabalho e tendo visto o escapulàrio no pescoço de Isidoro, repetidas vezes castigou-o com chicotadas, deixando-o semi-morto, na rua da amargura. Coberto de feridas, ensanguentado, Bakanja foi encontrado por um bom samaritano que o acolheu e cuidou dele. Apos seis meses de cruéis sofrimentos seu estado de saude piorava cada vez mais. Em julho de 1909, Isidoro recebe a vista dos missinàrios trapistas, faz sua confissâo, perdoa seu algoz e a 15 de agosto do mesmo ano volta para a Casa do Pai.

Isidoro Bakanja foi beatificado dia 24 de abril de 1994, durante o sinodo africano. Sua memoria é celebrada no dia 12 de agosto.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Páscoa!

Estou voltando agora mesmo da concelebração em nosso Colégio Maele, no centro da cidade. Celebração bem preparada: a dança elegante das “joyeuses”, a sincronia dos gestos e do andar dos coroinhas, a simpatia das leitoras, vestidas a rigor para a celebração, o perfume do incenso, o canto afinado do Coral, a homilia participativa do P. Zenon, a participação atenta dos fiéis, tudo isso deu à concelebração de hoje um toque bastante solene e encantador à missa da Ressurreição do Senhor.
Pensei e rezei por todos vocês.

Que a ressurreição de Cristo nos lembre, mais uma vez, que é preciso sair do túmulo de nosso egoísmo, de nosso amor próprio, da nossa avareza, de nosso orgulho, de nossa mentira, de nossa hipocrisia , de nossas injustiças, para a vida nova da solidariedade, do amor, da justiça e da paz.
Feliz Páscoa!


No meio de muitas alegrias, experimento cada vez mais, a tristeza da pobreza e da miséria que nos cerca. Como já lhes escrevi, sinto profundamente a dor de ver as crianças e jovens expulsos das salas de aula por falta de pagamento da mensalidade, que para nós seria uma bagatela, mas para eles aqui constitui um drama conseguir aqueles trocados para pagar a “prime”. Quanto possível, tenho ajudado alguns alunos, quer do primário, secundário e mesmo, do curso superior.
Gostaria de ajudar mais, também alguns órfãos que vivem na casa de uma caridosa senhora que os acolhe e lhes paga, alimentação, escola e vestuário, com grande dificuldade, pois ela ganha um salário de fome.

Não sei se estarei abusando demais da bondade de vocês se lhes pedir alguma colaboração em dinheiro (dólar) para ajudar alunos, alunas e órfãos de nossa paróquia.
Esse pedido é para o inicio do próximo ano escolar aqui, que é setembro/outubro. A anuidade( 12 meses) do primário e secundário não deve passar de 70 dólares americanos.
Como aqui não funciona banco nem cartão de crédito, temos uma conta em Roma, em nossa Casa central. De lá eles nos enviam o dinheiro.

Titular da conta: Casa Generalizia Sacerd. Sacro Cuore
Endereço da titular: Via Casale San Pio V, 20,
00165 Roma – Italia
IBAN: IT85 F010 2503 2171 0000 0002186
BIC: BICTITMM
N.B É preciso sempre escrever: P. Osnildo Carlos Klann


Meus amigos (as), desculpem se estou abusando de sua generosidade. Não gosto de pedir. Mas trata-se de algo necessário. Sei que a crise se faz presente por toda a parte. Mas vocês não podem imaginar o que significa viver numa região, onde quase nada funciona, e ouvir constantemente o grito da fome, da falta de moradia, de escola, de estradas, de emprego etc.
Deus os abençoe e lhes retribua em cêntuplo o que suas generosas mãos prodigalizarem.


Fraternalmente,
P. Osnildo Carlos Klann, scj
Kisangani, 12 de abril de 2009

sábado, 28 de março de 2009

De novo, Butembo

Introdução

Vou dividir essas minha crônicas em duas partes. Na primeira, me ocuparei dos fatos sócio-políticos que aconteceram na RD do Congo, no período em que estive em Butembo.
Na segunda parte, apresentarei os acontecimentos religiosos locais daquele período ( 6 de fevereiro a 10 de março de 2009).

Primeira parte

A viagem

Viajar, aqui, é sempre uma temível e perigosa aventura, aqui. Não se sabe a hora de partir nem muito menos de chegar. Vivi hoje, 6 de fevereiro, esta experiência. Às 10h05 m. estava no aeroporto de Kisangani. Soube, então, que o vôo seria às 13h30m. Um banho de cadeira. Realmente partimos às 15h10m. Pequeno avião russo. Pilotos russos também. Ao entrar fui logo procurando minha mala; ela estava ali no corredor, bem no banco à minha frente. Coitada, em baixo de todas as outras, já bem amassada. O principal é que estava lá.

No inicio, o avião tremeu um pouco. Depois se firmou. A viagem foi tranqüila. Em Beni chovera bastante. Tudo alagado. No aeroporto, ninguém me esperando. Telefonema do provincial me pedia para esperar, que alguém viria me pegar. Dito e feito. Pouco tempo depois, chegou um senhor, amigo dos nossos padres, que me levou até o parking, onde pegamos um táxi até Butembo. Que viagem, meu Deus! Nunca dancei tanto na minha vida! O chofer, louco, virava para a direita e para esquerda, da esquerda para a direita, em alta velocidade, querendo evitar os buracos, que eram muitos devido às chuvas. A estrada estava péssima. Buraco, lama, água, valetas etc... A maior parte do tempo, ele dirigia pela esquerda, mesmo nas curvas e, às vezes, ia em cima dos veículos que vinham em sentido contrário, e somente no último momento desviava de novo para a direita. Eu, ali na frente, á esquerda, - pois o volante estava á direita, - tremia e gritava com ele. Mas ele nem estava ali. Ria e continuava da mesma forma. Os passageiros de trás não diziam nada.

Em Butembo, os quatro passageiros de trás desembarcaram. Fiquei sozinho para continuar a viagem.
A subida para Kiragho foi também desastrosa. Era já noite feita. A estrada cheia de buracos, valetas e barro. O carro dançava. Nesse ponto o chofer era firme. Me dizia: “se soubesse que a estrada estava assim, não teria aceitado essa viagem.” Eu estava em duvida quanto ao caminho para o noviciado. E o chofer mais ainda. Mas graças a Deus, acertamos. Pelas 20h10m. desembarquei finalmente em o nosso noviciado. Recepção calorosa. Não pensava que seria assim bem acolhido. Ligeira refeição e cama. Estava cansado.

Graças a Deus, apesar dos transtornos, cheguei bem, no meu destino.



O fim da guerra

Estou no Estado congolês, Nord Kivu, onde até há pouco, se desenrolava uma insana guerra. Milhares e milhares de pessoas tiveram de fugir de suas casas e aldeias.. Milhares foram mortos; mulheres, casadas e solteiras, violentadas; adolescentes, incorporados aos grupos armados para lutar. Por toda a parte, a destruição, o saque, os incêndios, o sofrimento.

De repente, o grupo revolucionário o CNDP( O congresso nacional de defesa do povo) se dividiu. Num dia desses, o comandante Ntanga Bosco chegou em Goma, capital de Nord Kivu, reuniu os chefes do exército nacional do Congo e disse: “vamos assinar o tratado de paz. Nkunda não é mais o chefe. Não está agindo como se deve.” Os representantes de Nkunda, do governo congolês e os facilitadores internacionais (intermediários das negociações) estavam ainda discutindo a paz em Nairobi, Quênia, e em Goma, a paz já estava assinada. Até quando? se perguntaram muitos.

A prisão de Nkunda

Numa dessas reviravoltas incompreensíveis dos fatos, anuncia-se a prisão de Nkunda, em Ruanda. Ele justamente, que vinha sendo apoiado, em sua luta contra o exército congolês, por Ruanda, agora preso no país que o sustentava. O que aconteceu? A RD do Congo exige sua extradição. Ruanda vai extraditá-lo? Ele tem muitos crimes a pagar, mesmo perante a justiça internacional.

Soldados ruandeses, na RD do Congo

Um outro fato que causou protestos de todas as camadas sociais do Congo é a presença de milhares de soldados ruandeses em território congolês. E com a anuência do governo de nosso país. Será que Ruanda prendeu Nkunda sob condição de seus soldados invadirem o Congo, para, junto com os soldados congoleses, eliminarem o grupo armado FDLR ( Frente democrática de libertação de Ruanda), que luta contra o governo ruandês a partir do território congolês? Segundo declarações oficiais, fim de fevereiro é o prazo final de permanência dos ruandeses em território congolês. Muitos duvidam. Os congoleses têm péssimas recordações da presença dos ruandeses em seu território. As relações entre os dois países não são amistosas. Pelo contrário.

Mas a grande novidade de hoje, 25 de fevereiro, foi a retirada das tropas ruandeses do território congolês. Foi um momento histórico, pois muitos pensavam que essas tropas vizinhas jamais sairiam do país.. Graças a Deus, parece que a paz aqui no leste está se consolidando.

Outro grupo armado que foi desbaratado, ao menos em parte, é o LRA (sigla em inglês : Exército de resistência do Senhor). Grupo armado que do Congo investe contra Uganda. Congoleses e ugandeses unidos derrotaram os revolucionários.

Revolucionários reintegrados ao exército congolês

Outro acontecimento singular por aqui: terminada a guerra, os soldados revolucionários, muitos deles, se reintegraram ao exército congolês. Numa cerimônia militar de reintegração dos revolucionários, os representantes internacionais presentes, viram o comandante Bosco, que havia assinado a paz, ao lado de um ministro de Estado. Eles se retiraram da cerimônia, em protesto contra essa familiaridade de um ministro de Estado com alguém condenado internacionalmente por crimes de guerra, praticados em tempos passados. No meio de toda essa confusão não é fácil discernir onde está a verdade dos fatos.

A Monuc é um bem ou um mal no Congo?

Lendo revistas congolesas, percebo que há animosidade contra a presença da Monuc ( o exército da Onu), nesse território. Acusam a Monuc de fazer o jogo duplo, fingindo defender os congoleses e acobertando os ruandeses e os soldados de Nkunda.
Não só as revistas são contra. Mesmo as pessoas mais esclarecidas não aceitam a presença estrangeira em seu território. Acusam essas forças e essa presença de instrumentos de dominação estrangeira sobre o território congolês. A idéia da balcanização do Congo está ainda presente em muitos círculos internacionais e preocupa, inclusive a Conferência dos Bispos Congoleses, que repetidas vezes, vem alertando as autoridades sobre esse perigo.

Mas a Monuc reforçou seu contingente no território da RD do Congo. A meu ver, por enquanto, é necessária a presença da ONU nesse território. Se ela sair daqui, os grupos armados que são muitos, vão reaparecer. E as lutas vâo recomeçar.

E agora?
A guerra terminou. As famílias dos refugiados voltam para as suas casas e seus vilarejos destruídos, mas a situação sócio-politica da região não está clara.. A região dos Grandes Lagos é um pomo de discórdia; é um estopim que a qualquer momento pode estourar de novo. Queira Deus que não!
Li na revista congolesa “ Congo-Afrique” n° 429, de novembro de 2008, uma resenha do livro “ Les défis de la consolidation de la paix en RDCongo” ( OS desafios da consolidação da paz na Republica Democrática do Congo). No capitulo segundo, o professor Labana diz claramente que para se concretizar as aspirações da população congolesa por uma paz duradoura é preciso, antes de tudo, reforçar a economia, estimulando os setores privados (2); combater a corrupção (2); proteger a propriedade privada (3); vigiar para que haja uma justiça “justa” (5); tomar em consideração a questão de gênero, na administração publica do Estado, pois o papel da mulher na preservação de uma paz duradoura é importantíssimo(6); dispor de um exército forte( 7); organizar uma educação, via MCS, pela paz durável (8).
Realmente, conquistar uma paz durável, nesse pais, é um grande desafio, devido à multiplicidade de tribos e etnias, e a riqueza natural dessas terras, que estimula a cobiça de muita gente.


A solidariedade do povo congolês

Outro destaque é a solidariedade do povo congolês com os moradores do leste atingidos pela guerra. Aos poucos estão voltando para as suas casas, mas carecem de tudo, pois a guerra destruiu o pouco que tinham. A irmã do presidente Kabila está encabeçando uma iniciativa de arrecadação de ajuda às vítimas da guerra, com bons resultados. Entidades civis e religiosas, mesmo estrangeiras, se unem ao mutirão de solidariedade para socorrer a sofrida população do leste.



Duas alvissareiras noticias

Durante o periodo em que estive no Estado de Nord Kivu, o Sr. Presidente da Republica, Joseph Kabila fez uma visita àquele Estado e esteve justamente em duas idades por onde passei também: Beni et Butembo. Por toda a parte foi calorosamente aclamado, como heroi da paz.
Ele anunciou duas importantes iniciativas para a região: o asfaltamento da rodovia que liga Beni a Kisangani ( 540 quilômetros) e a extensão de energia elétrica para Beni e região a partir da hidroelétrica do pais vizinho, Uganda.
Se esses dois projetos se realizarem, teremos aqui um grande progresso. Estradas e energia, dois fatores que impulsionam o progresso.
Que esse sonho se torne realidade!

Kisangani, 23 de março de 2009
P. Osnildo Carlos Klann, scj

sábado, 21 de março de 2009

De volta à São Gabriel

Meus amigos, minhas amigas

Saudações brasileiras !

Estou de volta a Kisangani, há uma semana. Depois de curtir um mês o frio e a chuva de Butembo, volto ao calor de Kisangani. Tenho muita coisa a lhes dizer sobre minha estada lá no leste congolês, justamente, no Estado, onde acontecia a diabólica guerra de Nkunda.

De volta à minha comunidade de São Gabriel, não tive tempo para respirar. Diariamente, uma procissão de pedintes de todo tipo vem bater à minha porta pedindo ajuda financeira para seus problemas.
São adolescentes, crianças, jovens que pedem dinheiro para pagar a mensalidade escolar, pois foram expulsos da sala de aula por falta de pagamento; são pais que vem com o s mesmos pedidos, pois ainda não receberam o salário ridículo
que ganham, sempre com meses de atraso, quando ganham; são desempregados que pedem
ajuda para comprar uma máquina fotográfica, por exemplo, para poderem trabalhar, ou pás , machados, foices, para fazer uma plantação; universitários pedindo ajuda para retirar seus diplomas ou, os que ainda não terminaram os estudos, para pagar as anuidades e outras
despesas ( para passarem de ano devem dar alguma gorjeta para os professores!!!). Outros vêm pedir folha de papel para fazerem seus trabalhos escolares. Pedem tudo: caderno, lápis, régua, caneta...bola para jogar, roupa para vestir, quepes para se proteger do sol.
Inclusive, nesta semana tive um caso muito triste: uma jovem senhora grávida de oito meses, abandonada pelo marido, que foi buscar fortuna, nas minas de diamante do Congo, deixando na rua da amargura, a esposa com filho no ventre, veio me procurar pedindo ajuda, pois não tinha cama, não tinha colchão, não tinha dinheiro para pagar o aluguel de sua tapera, não tinha o que comer.
Evidentemente que não pude me furtar a essa ajuda. Telefonei para uma irmã franciscana de uma maternidade daqui para tomar todas as providências necessárias para o nascimento dessa criança. Com o dinheiro que recebi de amigos brasileiros posso dar essa assistência a essa mãe. No entanto, é só um caso, entre centenas que acontecem nesta pobre e desorganizada cidade de Kisangani.

Aqui existe a Caritas, uma seção em nossa paroquia, mas ineficiente. Aliás não há como arrecadar fundos para ajudar os outros. Pois todos são necessitados. Na verdade, não conheço, em nossa paroquia, uma família que a gente possa dizer que vai bem economicamente. Por causa dessa triste situação econômica, a realidade familiar é alarmante.

Apesar de toda essa pobreza, esse povo ainda dança e canta. As crianças são simpáticas e queridas, apesar da cara suja, da roupa rasgada e da barriga vazia.

Minha tristeza à noite é quando me lembro que não pude ajudar todo mundo; que devo caminhar ao ritmo da paroquia, controlando as ajudas, para não ser enganado, pois espertalhões existem em todas as partes. A ajuda para os alunos procuro fazer através da escola que conhece as crianças mais necessitadas. Ajudo no que posso, é verdade.

Apesar dessas dificuldades, desses ingentes problemas que machucam a gente, estou contente, com saúde e disposto a continuar em meu trabalho aqui até que minhas forças físicas permitirem;

Rezem por mim! Rezo por vocês.

Um abraço bem brasileiro a todos e a todas.
P. Osnildo

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Meu segundo Natal em terras africanas.

Natal totalmente diferente daqueles que vivi até dois anos atrás. Sem presentes, sem roupa nova, sem muitos presépios. No centro da cidade apenas um. Nas igrejas, sim; nas casas, não. Árvore de Natal, nem sombra. Vi um tolequista (taxista de bicicleta) com boné de Papai Noel. Nada mais. Estamos aqui bem longe de uma sociedade consumista. O dia de Natal mesmo é como qualquer outro dia de domingo. Indo celebrar missa em nosso Colégio Maele, no centro da cidade, vi muita gente trabalhando com enxada e foice; mamães com mercadorias na cabeça, indo para o centro, vender seus produtos...crianças brincando, não com os presentes que não ganharam, mas com a velha bola que eles mesmos fabricaram, de pano. Homens e mulheres pacatamente sentados à frente da casa, conversando ou vendo o tempo passar. Na verdade, tudo isso, dá uma dor profunda no coração da gente.

Não concordo com os exageros da nossa cultura consumista; mas sofro com essa realidade dura da miséria. Com o dinheiro que ganhei durante as férias, patrocinei cestas de Natal para as famílias mais miseráveis da comunidade. A grande maioria aqui é pobre. Se fosse dar para os pobres todos, deveria dar para toda a comunidade. Não há dinheiro que chegue. A gente distribuiu pouca coisa.. Além de produtos essenciais de alimentação e higiene, biscoitos e balas também para as crianças. Para elas, a comissâo de caridade da paróquia preparou um almoço. Cardápio: arroz, feijão, peixe defumado preparado no óleo. E um refrigerante.

Os paroquianos daqui não ajudam quase nada. O que deram para os pobres, neste Natal, foram dois quilos de alimento, alguns pedaços de sabão e uns 15 dólares. Nada mais.

A missa da véspera de Natal foi bastante solene. Longa. Muitos cantos e muita dança. Eles gostam disso.. Está no sangue deles toda essa movimentação celebrativa.

Depois da missa do dia 24, que terminou pelas 23h, tendo começado às 20h, partilhamos, junto com as religiosas de nossa paróquia, a ceia natalina. Coisa simples: arroz, banana frita, peixe defumado, carne de galinha, bolinho de trigo, frito no óleo ( baigné: se pronuncia benhê); tudo isso regado com cerveja, e refrigerantes. Na ceia de Natal, nâo faltou, inclusive, um vinho português, bom, por sinal: Valmaduro.

Ao contar tudo isso , não estou me queixando ou reclamando da vida; nada disso. Estou realizado, em minha missão, por poder partilhar um pouco a dor e a miséria desse povo.O duro é que não se pode, de imediato, resolver toda essa situação. Isso tudo é estrutural. ‘E preciso mudar a estrutura econômico-jurídica não só da África, mas do mundo, como vai declarar o Papa em sua mensagem do dia 1 de janeiro de 2009. “ A luta contra a pobreza exige uma cooperação quer no plano econômico quer no plano jurídico que permita à comunidade internacional e, em especial, aos países pobres de encontrar e de colocar em pratica soluções coordenadas para enfrentar esses problemas, oferecendo um quadro jurídico eficaz à atividade econômica”. O Papa reconhece que políticas baseadas no assistencialismo aos países pobres fracassaram completamente. O importante e necessário é “investir na formação das pessoas e desenvolver, de maneira inclusiva, uma cultura especifica de iniciativas”, que vão gerar bens, escreve o Papa. A mensagem corajosamente descarta a política de pura distribuição de riquezas existentes. Isso não resolve definitivamente o problema da pobreza. Segundo o Papa, numa economia moderna, o valor da riqueza está em sua possibilidade de criar recursos para o presente e para o futuro. Dar aos países pobres condições de gerar bens, recursos é a maneira eficaz e durável de lutar contra a pobreza.

Leiam, na integra, a mensagem papal cujo titulo é: Combater a pobreza, construir a paz!

Um abraço a todos e um Bom Ano Novo.

Kisangani, 30 de dezembro de 2008.

P. Osnildo Carlos Klann, scj

Portal DEHON Brasil

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